O ANDARILHO EDIMAR

Edimar é um rapaz de seus 35 anos que encontrei na areia do posto 4 da praia de Copacabana, perambulando pela madrugada pedindo moedas para fazer um lanche. O que ele queria, de verdade, era dinheiro para se drogar ainda mais e eu percebi isso logo nas primeiras frases que trocamos. Então, ao invés de dar-lhe dinheiro, pedi ao garçom do quiosque que trouxesse para ele um sanduíche igual ao meu, de queijo minas com salada verde no pão de forma integral, e uma Coca zero, e convidei-o para sentar-se conosco na mesa. Ele fez uma carinha de desapontado (por isso mesmo concluí que não era de comida que ele estava sentindo falta!...). Mas ele foi humilde e resolveu aceitar o lanche e meu convite para sentar-se. Enquanto esperávamos o lanche, ficamos conversando e, levado pela simpatia com que eu e os meus filhos o recebemos, mesmo naquele estado completamente afetado (e engraçado) em que ficam as pessoas com seqüelas pelo excesso de uso das drogas, ele foi filosofando e contando a história da vida dele, numa narração sincera e que mais parecia uma sessão de auto-análise. De início, foi logo reconhecendo que estava naquele estado por causa da droga. Mesmo com aquela fisionomia descuidada e abatida, tinha boa aparência e excelente educação. Sua mãe, segundo sua “confissão”, é um senhora de 78 anos, viúva, pecuarista, herdeira de uma grande propriedade rural no Rio Grande do Sul onde cria gado bovino de corte, e que deu-lhe uma grande soma de dinheiro para que viesse conhecer o Rio. Aqui Edimar logo se envolveu com a vida noturna da zona sul, e foi rapidamente absorvido pelo submundo das drogas e do sexo fácil. Em pouco tempo sua vida virou de cabeça para baixo. Vivia bêbado ou drogado, por si mesmo ou pelos falsos amigos que encontrava a desfrutar de seu dinheiro. Tinha que esperar chegar a momentos de lucidez para poder ligar com a voz firme para a mãe, a fim de que a mesma não percebesse sua embriaguez. Então dizia que estava tudo bem, e pedia mais dinheiro para pagar suas despesas, no que a mãe prontamente atendia sem saber que estava financiando a desgraça do próprio filho. Edimar drogou-se tantas vezes, que não conseguia mais sair de um estado crítico de aparência deplorável, não conseguia mais ficar totalmente sóbrio, nem conseguia mais ter firmeza na voz. Está com seqüelas. Fala como se estivesse bêbado, mesmo em estado de lucidez absoluta de raciocínio, como naquele momento em que estava contando sua vida. Depois de muita conversa, junto com uma turma de amigos de meus filhos que estavam conosco, fomos jogar futebol na areia. Isso já pelas quase 3 horas da madrugada. Edimar era só felicidade! Chocou meu coração ouvi-lo dizer, com naturalidade e a ingenuidade de uma criança e em meio às gargalhadas dos meninos que brincavam com ele na areia, a seguinte frase: “agora eu estou rindo de verdade!” Ele realmente nos comoveu.
Depois de muito cansados, a brincadeira terminou na água morna e revigorante das ondas e na despedida, quando entramos todos no carro para ir embora, a tristeza se estampou com intensidade no rosto do Edimar. Dei-lhe um livro de presente, um cd e finalmente nos despedimos. Aquela noite foi completa e divertida por causa daquele inusitado encontro com aquele andarilho tão simpático.
Fiquei refletindo sobre o quanto aquele moço precisava ser cuidado, recuperado, tratado no corpo e principalmente na alma. A história dele é impressionantemente semelhante à do filho pródigo! Comecei a pensar se havia, em meio a esse confuso mundo de expansão de igrejas de sucesso, com seus templos cada vez mais em busca de conforto e comodidades, pastores com sensibilidade para doar tempo para salvar pessoas como Edimar. Quando menino cresci lendo sobre a luta e o ministério de David Wilkerson, que se envolvia com as gangs perigosas do Bronx em Nova Yorque para salvar jovens destruídos pelas drogas. Será que existe em nossa geração tão mais afetada pelos entorpecentes algum outro David Wilkerson? Fiquei pensando em dezenas de pastores que conheço, e dos quais tenho telefone, e não consegui imaginar nenhum deles tendo tempo para dedicar-se a cuidar daquele andarilho. Então fiquei preocupado. Que tipo de evangelho estamos ensinando e aprendendo em nossas igrejas? Lembrei-me de pastores que admiro, outros que amo, mas me pareceu que nenhum deles saberia cuidar do Edimar. Vejo com tristeza que existem alguns pastores interessados em cuidar apenas de pessoas fragilizadas que possam dar-lhes boas ofertas, caso muito freqüente, só para exemplificar, de mulheres deixadas pelos maridos, e então os oportunistas se dedicam a oferecer-lhes orações de esperança, dissimuladamente interesseiras, prometendo-lhes orar para trazer o marido de volta, e por isso delas recebendo grandes ofertas. O evangelho nunca foi pregado por Cristo para esse fim. Isso não é apenas heresia, é perversidade disfarçada de solidariedade. Que o evangelho seja pregado como firme fundamento para que, fundamentadas nele, as famílias não sejam atingidas pela desgraça, isso é dever dos pastores. Mas que seja pregado como remediador de desgraças passionais, isso é repreensível e desvirtua a função original da mensagem redentora do evangelho. Não há em nenhum dos quatro evangelhos um só episódio de alguém que tenha procurado Jesus para resolver problemas passionais. Nenhuma mulher ou homem procurava Jesus ou os discípulos pedindo para que trouxessem seu cônjuge de volta! Isso é uma tendência desse evangelho deformado pelo capitalismo oportunista no qual vivemos nos dias de hoje. O evangelho genuíno apresenta aos homens a vontade de Deus, e não a promessa do cumprimento das vontades de nossas paixões. Quem cumpre a vontade de Deus jamais se desesperará se for deixado por um marido ou uma mulher, pois o seu alvo é a completude do espírito, e não a completude da carne. Problemas passionais são gerados por escolhas erradas que nós fazemos e Cristo não vai se ocupar em retirar o livre arbítrio nem do cônjuge que não escolheu bem, nem do outro que resolveu livrar-se de quem não lhe faz sentir-se em paz! Porém, é fácil arrancar dinheiro dessas pessoas tristes e fragilizadas, pois é lógico que elas querem se sentir remediadas, e acabam sendo sutilmente “tarifadas” em troca de discursos de esperança. Quando nos ocupamos em pregar a resolução de problemas passionais dos desajustados, nos tornaremos deformadores do evangelho, pois milhares de famílias ajustadas pela obediência á vontade de Deus que estão em perfeita harmonia sentirão falta de alimento espiritual sadio, de sermões edificantes para sua fé, e sentem-se às vezes constrangidos em levar seus filhos aos cultos para ficarem ouvindo sermões encomendados a serviço de pessoas centradas em seu próprio ego que estão mais interessadas em ter de volta na cama um corpo que lhe servia para deleite do que em manter-se fiel a Deus no que ainda lhe compete viver. Eis o porquê das famílias mais tradicionais e mais conservadoras estarem nas igrejas mais tradicionais ou na católica (pois até mesmo os padres em seu serviço procuram explanar apenas a pureza do texto evangélico, e reservam ao segredo do confessionário os distúrbios que podem abalar a fé dos fracos). Outro artifício de atração utilizado por alguns ministros religiosos desse evangelho contextualizado pelo capitalismo é o de atrair empresários prometendo-lhes através da fé a plenitude da prosperidade financeira. Desde quando Cristo esteve disponível para se sujeitar aos caprichos dos sonegadores de impostos, avarentos, maus empregadores, que pagam mal e tratam mal seus empregados? O evangelho bíblico que conheço desde criança se ocupa de coisas mais elevadas do que o dinheiro e a satisfação do leito carnal: a cura das enfermidades do corpo, da alma e do espírito. Enquanto os pregadores do evangelho deformado pelo capitalismo enriquecem, os morros e as favelas estão abarrotados de “Edimar”, e as nossas igrejas seguem cheias de paralíticos, cancerosos e enfermos que esperam seu milagre em vão, pois parece que ninguém há que se interesse em buscar poder e autoridade para curá-los. Mas apesar da indignação com os “deformatários” do evangelho, estou muito feliz por que hoje recebi finalmente uma ligação do Edimar. Ainda com a voz um pouco afetada, ele me fez chorar quando declamou um dos poemas do livro que lhe dei que serviu de força para ele vencer a cocaína. Agora que refizemos contato, espero em breve testemunhar aqui de uma grande virada na vida do Edimar, meu querido amigo gaúcho, que espero em breve poder reencontrar como um firme seguidor de Cristo e, quem sabe, mais um “David Wilkerson” a serviço do Reino de Deus.

Sergio Lopes
Poço das Ovelhas, 28 de janeiro de 2009.